terça-feira, 14 de setembro de 2010

ÉTICA DA ALTERIDADE NA PERSPECTIVA CRISTÃ: A PARÁBOLA DO BOM SAMARITANO" PARTE III




O segundo instante do debate inicia-se conforme o esquema a seguir :

Segundo Instante
(5) Intérprete da Lei (Pergunta 3)“Quem é o meu próximo?” verso 25
(6) Jesus (Pergunta 4) “Certo descia de Jerusalém [...]. Qual destes três te parece ter sido o próximo do homem que caiu nas mãos dos salteadores?” versos 29 - 35
(7) Intérprete da Lei (Resposta 4)“O que usou de misericórdia para com ele” verso 27
(8) Jesus (Resposta 3) “Vai e procede tu de igual modo” verso 28

É interessante postular que o substantivo grego comumente traduzido como próximo, referia-se ao “companheiro”, “vizinho” e ao “amigo” . O próximo era, geralmente, compreendido como um simples semelhante . Os habitantes da comunidade Qumran eram um exemplo proficiente desta perspectiva. Eles acreditavam que todos os que não pertenciam a seu pequeno grupo eram “filhos das trevas”, e deveriam ser odiados . John Ligthfoot cita uma interessante midrah do livro de Rute que afirma:


Dos gentios, como que não temos guerra, bem como os que são guardadores de ovelhas entre os israelitas, e outros semelhantes, não devemos planejar a morte; mas se correrem qualquer perigo de morte, não somos obrigados a livrá-los; por exemplo, se algum deles cair no mar, você não precisará tirá-lo; pois está escrito: “Não te levantarás contra o sangue do teu próximo”, mas tal pessoa não é o teu próximo .

Ainda que de forma especulativa, o teólogo Ibn AL-Tayyib realiza um intrigante comentário acerca da questão levantada pelo interprete da lei:

A pergunta feita a Cristo: “Quem é o meu próximo?” é feita a fim de que Ele responda: “Os seus parentes e amigos”. Então o doutor da Lei responderá: “Tenho amado plenamente essas pessoas”. E então Jesus o louvará e lhe dirá: “Verdadeiramente cumpristes a lei”. O doutor da lei então irá embora, pavoneando-se diante do povo no louvor das suas boas obras, e gozando de uma nova honra e confiança, conseguidas com base nesse louvor .

A análise de AL-Tayyib não deve ser compreendida à luz de uma mera tentativa hipotética de reconstruir as expectativas do intérprete da Lei. Ao contrário, a afirmação de AL-Tayyib encontra validade quando se é interpretada à luz de uma intrigante especulação que expressa parte da compreensão judaica antiga acerca do próximo.
Por meio do discurso, Jesus rompe com esta compreensão de próximo enquanto simples semelhante, estabelecendo um intrigante modelo ético-teológico. A narrativa do “Bom Samaritano” é o clímax do estabelecimento deste novo modelo.

Jesus, portanto, retoma sua fala no debate expondo uma conspícua gesta: “Certo homem descia de Jerusalém para Jericó e veio a cair em mãos de salteadores, os quais, depois de tudo lhe roubarem e lhe causarem muitos ferimentos, retiraram-se, deixando-o semi-morto”. A estrada que historicamente liga estas duas cidades é famosa devido sua periculosidade . Os 27 quilômetros que a compõe fazem parte de uma região desértica e sem vegetação, em que, os diversos penhascos de pedras calcárias e barrancos, que compunham a paisagem do local, eram utilizados como esconderijos dos assaltantes .

Segundo esta narrativa, o tal homem viajava sozinho por esta estrada, quando foi surpreendido por salteadores, que provavelmente, levaram-lhe os bens, além de causar-lhe diversos ferimentos deixando-o inconsciente .
Pesquisas recentes têm apontado para o fato de que, na Palestina do primeiro século, as identificações dos indivíduos pertencentes a determinado grupo étnico, social, religioso ou mesmo tribal eram realizadas, especialmente, por meio da língua materna e das vestimentas . O estado de nudez e inconsciência impossibilitava a identificação deste homem com qualquer grupo étnico e religioso da palestina, transformando-o em um simples desafortunado indigente a mercê da morte na beira da estrada. Sua face rompia com qualquer horizonte do qual ele pudesse ser identificado. O seu rosto era um apelo à vida, ao socorro, à alteridade absoluta, à prioridade do outro, enquanto aquele que se encontra desprezado à beira do caminho, como ideal regulador do eu.

Ao prosseguir a narrativa, Jesus introduz a presença de um proeminente personagem da religiosidade judaica, o sacerdote. Ao passar pela estrada, este observou a situação do homem ferido e, em uma atitude de desprezo e omissão, desviou-se dele. Após a saída do sacerdote, entra em cena outra importante figura da religiosidade judaica, o levita. De forma semelhante ao sacerdote, o levita, em uma atitude de completa indiferença, desviou-se do homem ferido, abandonando-o semi-morto na estrada.

Os motivos que os conduziram a desviarem do pobre desafortunado são alvos de diversas especulações. Entre elas destacam-se: o perigo que ambos correriam de serem surpreendidos pelos assaltantes ao pararem durante a viagem para prestar auxílio ao homem, ou mesmo, o risco de que ao auxiliarem o indigente, o encontrassem morto, desobedecendo, desta forma, a uma prescrição teológica que os proibiam de entrar em contato direto com cadáveres . Entretanto, independente dos reais motivos que os conduziram a indiferença em relação ao indigente, o texto bíblico avalia negativamente a omissão destes líderes religiosos.

Após a saída do sacerdote e do levita, a parábola atinge seu ápice, na irrupção do heróico protagonista. Este, em uma atitude altruísta, presta a ajuda necessária ao homem ferido, cuidando de suas feridas e conduzindo-o para um local seguro.
Em nossa próxima postagem analisaremos a irrupção do "Bom Samaritano" neste drama.

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